uma análise de O Peregrino – Igreja Gileade de Juazeiro do Norte

  1. Introdução

No cenário literário e teológico do século 17, uma obra singular emergia, destilando os ideais e os anseios de um movimento religioso que se enraizava na Inglaterra: O Peregrino de John Bunyan. Este épico alegórico cujas páginas são entrelaçadas com as vicissitudes de Cristão em busca da redenção divina, transcendendo sua narrativa como uma janela para o imaginário puritano. Este imaginário, fortemente influenciado por um contexto religioso que demandava uma busca incessante pela santidade, encontrou na prática da meditação um caminho bíblico para a comunhão com Deus e um meio para desvendar as profundezas do divino.

O presente artigo se propõe a explorar e analisar o papel da meditação na construção desse imaginário puritano, revelando como a contemplação espiritual não apenas permeia as páginas de O Peregrino, como também molda a cosmovisão e o caráter dos protagonistas, consolidando-se como uma peça-chave na construção da identidade puritana.

1.1. Contextualização histórica e teológica da era puritana

A era puritana foi um período histórico que abrangeu aproximadamente o século 16 ao 17, marcado por um movimento religioso, social e político dentro do contexto da Reforma Protestante na Inglaterra e suas colônias na América do Norte. Os puritanos bus- cavam purificar a Igreja Anglicana das influências católicas remanescentes, desejando uma espiritualidade mais simples e austera, baseada na Bíblia. Eles enfatizaram a autoridade das Escrituras e uma vida piedosa centrada na relação direta com Deus.

Teologicamente, os puritanos eram calvinistas e por consequência enfatizavam a predestinação, a soberania de Deus e a total depravação humana. Eles acreditavam que a salvação era concedida apenas pela graça divina e essa crença influenciava profundamente suas práticas religiosas e o seu estilo de vida. A moralidade e a ética do trabalho eram características marcantes da sociedade puritana, que entendia que toda a vida deveria ser vivida diante de Deus.

Na Inglaterra, o período puritano foi marcado por conflitos entre os puritanos e os monarcas da dinastia Stuart, que tentavam impor formas de culto mais ritualísticas e hierárquicas. Essa tensão culminou na Guerra Civil Inglesa e na ascensão temporária do regime puritano liderada por Oliver Cromwell. Enquanto isso, na América do Norte, os puritanos estabeleceram colônias como na Baía de Massachusetts, onde buscaram criar uma sociedade baseada em seus princípios religiosos.

A era puritana também trouxe contribuições valiosas para a sociedade. Seu foco na educação levou à fundação de diversas instituições de ensino que ainda existem hoje, como as universidades de Harvard e Yale nos Estados Unidos. Além disso, sua ética de trabalho e busca pela excelência moldaram atitudes empreendedoras e a dedicação ao progresso. Foi J. I. Packer quem disse que:

Puritanos típicos não eram homens selvagens ou ferozes, monstruosos fanáticos religiosos ou extremistas sociais, mas pessoas sóbrias e conscienciosas, além de cidadãos cultos, pessoas de princípio, decididas e disciplinadas, excepcionais nas virtudes domésticas e desprovidas de grandes defeitos, exceto a tendência de usar muitas palavras ao dizer qualquer coisa importante, a Deus ou ao homem (PACKER, 2016).

A ênfase puritana na responsabilidade individual diante de Deus e da comunidade contribuiu para o desenvolvimento de uma ética de serviço e cuidado pelos necessitados.

Na literatura, os puritanos deixaram um legado notável, produzindo obras de profunda reflexão teológica e espiritual, além de narrativas que exploravam dilemas morais e a luta entre o bem e o mal. Autores como John Bunyan e Anne Bradstreet influenciaram a literatura posterior com suas obras que exploraram questões de fé, esperança e resiliência.

Portanto, a influência puritana, ajudou a moldar uma base de valores que ainda hoje são relevantes. Afinal, os puritanos eram:

Grandes almas servindo a um grande Deus. Neles, a paixão sóbria e a terna compaixão se combinavam. Visionários e práticos, idealistas e também realistas, dirigidos por objetivos e metódicos, eram grandes crentes, grandes esperançosos, grandes realizadores e grandes sofredores (PACKER, 2016).

Sua busca por uma vida piedosa, moral e compromissada com a comunidade deixou um legado remanescente que impactou não apenas a religião, mas também a edu- cação, a ética profissional e a literatura, contribuindo para a riqueza cultural das sociedades que seguiram seus passos.

1.2 Apresentação da obra O Peregrino de John Bunyan

O Peregrino é uma obra clássica escrita pelo puritano John Bunyan e publicada pela primeira vez em 1678. A obra é uma alegoria espiritual que narra a jornada de um personagem chamado Cristão por meio da Cidade da Destruição até a Cidade Celestial. O livro é uma metáfora poderosa e inspirada na jornada da alma em busca da salvação e da transformação espiritual.

No início da história, o protagonista Cristão, após uma revelação de sua condição espiritual perdida, inicia uma jornada para escapar da Cidade da Destruição e encontrar o caminho para a Cidade Celestial, representando a busca da redenção e da paz interior. É reveladora a passagem em que Cristão diz preferir qualquer perigo: “Porque, senhor, este peso que carrego é mais terrível do que qualquer um desses horrores que mencionou. Eu não me importaria de enfrentá-los se conseguisse livrar-me deste fardo” (Bunyan, 2014). Ao longo de sua jornada, Cristão encontra uma série de personagens e obstáculos, cada um com seus próprios significados simbólicos, que representam os desafios e tentações que os crentes enfrentam ao longo de suas vidas.

Enquanto avança em sua jornada, Cristão passa por diversos lugares, como o Palácio Bonito, o Vale da Sombra da Morte e o Castelo da Dúvida, cada um com suas lições e ensinamentos espirituais. Ele também encontra companheiros de viagem, como o Fiel e o Esperançoso, que compartilham sua busca pela salvação. Ao longo da história, os personagens enfrentam adversidades, dúvidas e momentos de fraqueza, mas também experimentam momentos de graça e socorro.[1]

Através de uma linguagem ricamente simbólica e uma narrativa envolvente, O Peregrino explora temas universais de fé, saber: a perseverança, o arrependimento e a esperança. A jornada de cristão e seus companheiros ressoa a leitores de todas as épocas, oferecendo percepções profundas sobre a natureza da espiritualidade e a busca pela verdadeira conversão. A obra continua sendo uma fonte de inspiração para os crentes e para qualquer pessoa interessada em explorar os desafios e triunfos da jornada de peregrinação cristã.

1.3. Objetivos e relevância da pesquisa

Uma pesquisa sobre o papel da meditação na formação do imaginário puritano em O Peregrino, de John Bunyan, visa aprofundar nossa compreensão das influências bíblicas e teológicas que moldaram a mentalidade dos puritanos do século 17. O estudo desse clássico literário permite desvelar como a prática da meditação, tão valorizada pelos puritanos, contribui para a construção de sua visão de mundo definida pela busca da pureza espiritual e pela intensa piedade pessoal. Ao investigar os trechos em que a meditação é retratada, podemos traçar paralelos entre as experiências contemplativas dos personagens e a retidão moral que os puritanos buscavam alcançar.

Além disso, a pesquisa busca explorar como a meditação representada na obra influenciou a percepção da jornada espiritual. Ao analisar os momentos em que os personagens se envolvem na meditação, podemos identificar como essa prática contribuiu para o desenvolvimento de sua espiritualidade e fortalecimento sua determinação em enfrentar os desafios que surgem ao longo da narrativa. A pesquisa também visa destacar como a meditação, ao fomentar a introspecção e a comunhão com Deus, serviu como uma ferramenta essencial na construção da narrativa e na caracterização dos personagens.

Por fim, a investigação do papel da meditação na formação do imaginário puritano em O Peregrino lança luz sobre as interseções entre a teologia, a literatura e a piedade da época. Ao entender como a meditação era considerada uma prática espiritual crucial para os puritanos e como isso se reflete na obra de Bunyan, podemos enriquecer nossa análise da influência da fé e da mentalidade puritana na produção literária do período. Isso fornece uma visão mais profunda das motivações e valores que contribuíram tanto para os personagens da história quanto para a prática da piedade na era puritana.

  1. Meditação na teologia

A meditação ocupa um espaço importante na teologia prática puritana. Puritanos eram homens graves e reverentes em sua relação com Deus e a meditação era o modo pelo qual adentravam as profundas grandezas de Deus e de sua Palavra. David Saxton lembra que “os reformadores e puritanos regularmente escreviam, ensinavam e exortavam o povo de Deus a uma vida de meditação (SAXTON, 2022).

2.1. Definição de meditação no contexto puritano

No contexto puritano, a prática da meditação ocupava um lugar central na vida espiritual dos crentes. Os puritanos buscavam uma conexão profunda com Deus e acreditavam que a meditação era um caminho para alcançar essa comunhão. Por meio da reflexão e da contemplação, eles se aproximavam das verdades espirituais e buscavam o aprofundamento de sua relação com o divino. Como afirma David. W. Saxton para os puritanos:

A meditação divina tem um valor multifacetado. Ela fornece discernimento espiri- tual; melhora nossa leitura da bíblica e vida de oração; aplica verdades gerais da bíblia pessoal e especificamente; fortalece nossos corações focando em verdades espirituais; e fornece o benefício duradouro de ficar refletindo sobre as verdades que conhecemos (SAXTON, 2022).

A meditação puritana era baseada na Palavra de Deus, na leitura e no estudo das Escrituras. Os puritanos dedicavam tempo diário para meditar sobre os ensinamentos bíblicos, buscando compreendê-los e aplicá-los em suas vidas. Por meio dessa prática, eles esperavam obter discernimento espiritual, revelação divina e fortalecimento da fé. Saxton lembra que “o primeiro ingrediente na meditação puritana era o uso sério da mente. Eles ensinaram que um crente deve pensar profundamente sobre um assunto bíblico” (Saxton, 2022).

Essa forma de meditação também envolve uma autorreflexão profunda sobre os próprios pecados e a necessidade de redenção. Os puritanos encorajaram a introspec- ção e a análise crítica de seus pensamentos, palavras e ações, em busca de um maior autoconhecimento e de uma vida mais alinhada com a glória de Deus.

Apesar de um chamado a introspecção, em certo sentido, Saxton enfatiza que:

A meditação puritana nunca encorajou uma vida de contemplação inativa ou especulação teológica inútil. Pensar assim seria um sério mal-entendido da espiri- tualidade puritana. Para levar uma pessoa ao ponto de aplicação pessoal, prática e resolução, os puritanos ensinaram que a mente deve considerar corretamente as verdades da Palavra de Deus. Esclarecendo o uso da mente na meditação, Oliver Heywood escreveu: “Não é um mero exercício da mente e da memória sobre coisas boas, mas um operá-las sobre o coração, a impressão dessas coisas sobre a vontade e afetos; não é meramente especulativo, mas prático”. Bates advertiu: “Se nossa meditação for meramente especulativa, é apenas como um sol de inverno, que brilha, mas não aquece”. Essa crença na natureza prática da meditação bíblica é entrelaçada na própria tapeçaria do entendimento puritano (SAXTON, 2022).

 

Em resumo, a prática da meditação no contexto puritano tinha como objetivo promover a comunhão com Deus, aprofundar a compreensão dos ensinamentos bíblicos e buscar uma vida de piedade e retidão moral. Era vista como uma disciplina espiritual essencial para fortalecer a fé, obter sabedoria divina e moldar o caráter consoante aos valores bíblicos, para uma vida inteira reflete a glória de Deus.

2.2. Importância e propósitos da meditação para os puritanos

A meditação bíblica ocupou um papel central na vida espiritual dos puritanos. Para os puritanos, a Bíblia era a fonte primordial de orientação divina e a meditação constituía uma prática essencial para aprofundar o entendimento das Escrituras e cultivar uma comunhão mais profunda com Deus. Eles acreditavam que a meditação bíblica não apenas fortalecia sua fé, como também nutria a virtude e a piedade, fundamentando suas vidas em princípios teológicos, morais e éticos extraídos das Escrituras.

Foi David Saxton quem lembrou:

Uma grande parte de glorificar o Senhor e desfrutar dele é pensar pensamentos dignos de sua excelência e louvor […] Oliver Heywood comentou: “Pensamentos santos formam grande parte da devoção de um cristão […] Este exercício de pensamentos é, de fato, o caminhar de um cristão com Deus. É uma comunhão com Deus, um passeio no paraíso e desfrutar de Deus”. Willian Bridge pregou que era dever de crente meditar sobre o Senhor, e “quanto mais o coração de qualquer homem está cheio de meditação, mais recheadas suas palavras estarão dos louvores a Deus” (SAXTON, 2022).

O propósito da meditação bíblica para os puritanos é além do simples conhecimento intelectual. Eles buscavam uma aplicação prática das verdades bíblicas em sua vida cotidi- ana, acreditando que a Palavra de Deus tinha o poder de transformar não apenas a mente, como também o coração e o comportamento. Joel Beeke ressalta que “um obstáculo ao crescimento entre os cristãos de hoje é nosso fracasso em cultivar o conhecimento espiritual. Deixamos de dar tempo suficiente à oração e à leitura bíblica e temos abandonado a prática da meditação” (Jones, 2016).

A meditação era vista como um meio de internalizar os ensinamentos bíblicos, permitindo que eles moldassem a consciência e as ações dos indivíduos. Essa prática constante de reflexão sobre as Escrituras contribuiu para a formação de uma comunidade puritana fundamentada em princípios cristãos sólidos. A meditação bíblica também desempenhou um papel crucial na busca da santidade pessoal pelos puritanos. Eles consideraram a introspecção baseada na Palavra como uma ferramenta vital para a purificação espiritual e o combate contra as tentações do mundo.

Para os puritanos a tentação e pecado, sem vigilância e oração, andam juntos. Um leva ao outro. “Que nenhum homem, então, finja temer o pecado o qual não teme a tentação a ele”, escreve Owen. “Eles são aliados muito próximos para serem separados”. Mas se pudermos diari- amente manter vivos em nossos corações uma consciência de grande perigo do pecado para nossas almas, se, como Owen diz, “o coração for feito terno e vigilante aqui, metado do trabalho foi feito” (HEDGES, 2023).

Por este motivo a meditação ocupava uma posição tão importante nas práticas espirituais puritanas. Por meio da meditação, os puritanos procuram discernir a vontade de Deus para suas vidas e cultivar uma consciência sensível ao pecado. A prática constante da meditação alimentava a devoção individual e contribuía para uma comunidade coesa, no qual os membros experimentavam valores espirituais e se apoiavam mutuamente na jornada da fé.

2.3. Práticas e métodos de meditação na era puritana

Na era puritana, inúmeros pastores pregaram e escreveram sobre como meditar (JONES, 2016). Todo esse esforço visava à edificação de uma comunidade cristã piedosa, forte que nutria uma profunda comunhão com Deus. A essência da meditação puritana é a busca pela comunhão profunda com Deus por meio da introspecção e da reflexão sobre as Escrituras. Essa prática envolve métodos específicos que se alinham com os princípios bíblicos.

David Saxton ressalta que:

Os puritanos ensinaram que havia dois tipos de meditação — ocasinal e deliberada. Ambos têm o propósito de elevar os pensamentos à verdade de Deus. A principal diferença entre as duas sendo que a meditação ocasional era espontânea enquanto a meditação deliberada era planejada (SAXTON, 2022).

A meditação ocasional era uma meditação curta, que ocorria de forma repentina e espontânea, em alguma ocasião do cotidiano quando se voltavam os pensamentos para Deus, de modo a contemplar sua dignidade e grandeza, bem como sua graça e bondade. Assim, diz Saxton: “a meditação ocasional usa qualquer experiência na vida para colher frutos espirituais — convertendo as atividades mundanas da vida em joias de pensamentos divinos” (SAXTON, 2022). Esse tipo de meditação é relativamente simples, e ocorre quando o crente se volta para a criação e contempla nela as marcas de seu Criador e, por isso, tem suas afeições afetadas.

Saxton ainda nos lembra que:

Os puritanos entenderam que Deus concedeu à humanidade três livros diferentes sobre os quais meditar — a Escritura, a consciência e a criação. Swinnock explicou: “Deus nos deu três livros, que deveríamos estar estudando enquanto estivermos vivos: o livro da consciência, o livro das Escrituras e o livro da criação; no livro da consciência podemos ler sobre nós mesmos, no livro da criação podemos ler sobre Deus, no livro das Escrituras podemos ler tanto sobre Deus quanto sobre nós mesmos (Saxton, 2022).

Os puritanos, no entanto, consideravam a meditação deliberada mais importante do que a meditação ocasional. Esse tipo de meditação é planejado, tem hora marcada e um caminho específico a ser trilhado, tirando sempre seu conteúdo das páginas da Escritura Sagrada. As fontes da meditação intencional são basicamente quatro: as Escrituras, verdades práticas do cristianismo, sermões e as ocasiões providenciais (JONES, 2016). A meditação deliberada visava uma espécie de sequestro da alma, onde o crente fosse submerso nas re- alidades espirituais do evangelho, chegando a um estado de maravilhamento, que atingiria sua mente e coração, seu intelecto e volições.

A meditação deliberada era dividida em duas partes: a meditação direta e a meditação reflexiva. David Saxton ressalta que:

A meditação direta é usada para obter uma melhor compreensão bíblica sobre um tema, enquanto a meditação reflexiva é empregada para convencer o coração sobre a aplicação de um entendimento recém-encontrado. Como explicou Henry Scudder: “A primeira [meditação direta] é um ato da parte contemplativa do enten- dimento; a segunda [meditação reflexiva] é um ato da consciência. O propósito do primeiro é iluminar a mente com conhecimento; o fim do segundo é encher o coração de bondade” (SAXTON, 2022).

  1. Imaginário puritano em O Peregrino

A obra de John Bunyan é uma rica fonte pela qual jorram os efeitos da meditação na formação do imaginário puritano. Ao percorrer junto de Cristão o caminho do peregrino, pode-se perceber como a meditação bíblica forma as impressões e os afetos religiosos do autor. Desde sua saída da Cidade da Destruição, até sua chegada a Cidade Celestial, o que encontramos na jornada do Peregrino é o resultado do transbordar de uma mente saturada com a realidade divina por meio da meditação.

3.1. Descrição e análise

O Peregrino é uma obra literária escrita por John Bunyan, publicada e originalmente em 1678. A narrativa é uma alegoria cristã que segue a jornada espiritual de um personagem chamado Cristão, que empreende uma viagem épica em busca da Cidade Celestial. Bunyan nos introduz a história de um homem, sobre quem ele diz:

Vestido com trapos imundos, de pé em certo lugar, e o seu rosto estava voltado em direção à sua casa; ele tinha um livro em suas mãos e um grande fardo estava preso às suas costas. Eu olhei e o vi abrindo o livro, e lendo o que estava escrito nele. Ele começou a chorar e a tremer, e não foi capaz de se conter por muito tempo, iniciando um grande clamor, e dizendo: “O que devo fazer?” (BUNYAN, 2014).

Pinta-se a vívida imagem de um pecador que se tornou consciente de seu pecado. Um homem vestido de seus deméritos, carregando consigo o pesado fardo de seus pecados, lamentando profunda e dolorosamente a sua condição. Ele carrega um livro, o melhor de todos os livros, e ao ler seu conteúdo tem sua alma desnuda diante de si, não podendo se conter. A sua condição rompe-se diante dele. Este é o tom dado por toda a obra de Bunyan.

Em sua obra, os quadros fruto de sua profunda meditação nas Escrituras e nas doutrinas centrais da fé, são pintados de forma magnífica. Cada passo do Cristão é um novo elemento de sua caminhada cristã. Sua jornada é uma descrição vívida da jornada de todos os eleitos, que vai do grito de dor, quando se percebem na Cidade da Destruição, à expressão de louvor, quando finalmente vislumbram a Cidade Celestial.

Bunyan relata como o Espírito Santo conduz seu povo em segurança até a Cidade Celestial. O contraste claro é estabelecido no fim da obra quando Cristão é recebido nos portões da Cidade Celestial, não mais desesperado por seu estado de miséria, mas sim, transformado pela profunda obra do Espírito:

O Rei ordenou, então, que abrissem os portões, “Abram as portas para que entre a nação justa, a nação que se mantém fiel”. E eu vi em meu sonho que aqueles dois homens seguiram até o portão e de repente, à medida que entraram pelos portões, foram transfigurados; tiveram suas roupas transformadas e elas começaram a brilhar como ouro. Também receberam coroas em suas cabeças e harpas em suas mãos. As harpas foram dadas para a adoração e as coroas em sinal de honra. Ouvi todos os sinos da cidade tocando em sinal de alegria e era isto que a música deles dizia, “Venha e participe da alegria do seu Senhor. Também ouvi que os dois homens cantavam com grande voz, ”Ao que está assentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos, amém” (BUNYAN, 2014).

3.2. Elementos do imaginário puritano presentes na obra

O puritanismo era essencialmente “calvinista” em sua forma de pensar. Estavam profundamente comprometidos com as doutrinas sobre a depravação do homem, a graça eletiva de Deus, o poder preservador do Espírito Santo, a necessidade da igreja e da comunhão cristã, bem como o anseio constante pela glória futura. Estes aspectos e muitos outros podem ser claramente vistos na construção narrativa da obra de John Bunyan.

Pode-se ver os elementos do imaginário religioso puritano praticamente em cada nova linha escrita. O retrato inicial do homem vestido de trapos imundos, e se desesperando ao ler o conteúdo do livro, revelam a doutrina da depravação total, que apresenta a realidade da pecaminosidade humana. Bunyan pinta vividamente o quadro de alguém que se deparou com a realidade da ira vindoura e do juízo sobre os pecadores. Unindo-se a isso, pode ser percebido a clara relação do trabalho de Evangelista com a doutrina do Chamado Eficaz, que afirma que Deus chama para si pecadores eficazmente por meio da pregação do evangelho.

Os desdobramentos imaginativos da obra são fascinantes por serem fruto de pro- funda meditação nas verdades da Escritura. Outro elemento do imaginário puritano que pode ser visto na obra é o contínuo poder do Espírito Santo preservando seu povo. Essa realidade fica especialmente visível quando Cristão é deixado sozinho para afundar no Pântano da Desconfiança, até que acaba por ser resgatado por um homem cujo nome era Auxílio. Bunyan descreve incrivelmente a obra do Espírito estendo sua graça onipotente para socorrer aqueles que estão em aliança com Deus por causa de Cristo. Até mesmo quando Cristão encontra com Intérprete, a imagem proposta é do Espírito Santo guiando seu povo ao revelar a verdade da Escritura Sagrada.

A importância dos oficiais da igreja e o que os puritanos acreditavam sobre o ministério pastoral pode ser vividamente percebido, quando Intérprete faz questão de mostrar a Cristão o quadro de um homem solene e majestoso. O retrato que se apresenta é o seguinte:

O quadro o mostrava assim: olhos erguidos aos céus, o melhor dos livros em sua mão, e a lei da verdade escrita em seus lábios; dando as costas ao mundo e ele em pé, como se argumentasse com os homens e com uma coroa de ouro que pendia de sua cabeça […] O homem do quadro é um dos milhares. Ele pode, como disse o apóstolo Paulo, gerar filhos espirituais, entrar em trabalho de parto por eles e cuidar deles quando nascem. Esta é a razão de estar com os olhos levantados para os céus. O melhor dos livros em suas mãos, e a lei da verdade em seus lábios, é para mostrar que o trabalho dele é conhecer e revelar as coisas obscuras aos pecadores, e por isso está em pé como se falasse com os homens para convencê-los. O mundo atrás de si e a coroa pendente de sua cabeça significam que, desprezando as coisas deste mundo por amor daquele que é o seu Mestre, com certeza receberá sua recompensa em glória no mundo vindouro (BUNYAN, 2014).

Pode-se destacar ainda a primazia das Escrituras para a firmeza da fé, quando Cristão e seu companheiro de peregrinação Esperançoso acabam presos no Castelo da Dúvida, e estão sendo castigados pelo Gigante Desespero. O que os liberta é a Chave da Promessa. Essa imagem reflete a crença puritana na suficiência das Escrituras para tratar as feridas da alma de crentes em dúvida e desespero. Puritanos eram conhecidos como médicos da alma e sua ferramenta principal era a Escritura Sagrada.

A importância da igreja e da comunhão cristã pode ser vista na obra pela presença constante de companheiros na caminhada de Cristão. Fiel, seu amigo martirizado na Feira das Vaidades, Esperançoso, Boa Vontade e os Pastores da Montanha das Delícias, todos figuram de alguma maneira a realidade bíblica de que a vida cristã é uma vida em comunidade, não individualista.

3.2. Relação entre a meditação e a construção do imaginário puritano

A relação intrincada entre meditação e a formação do imaginário puritano no contexto da história religiosa e cultural da Europa e da América do Norte no século 17 é digna de profunda análise. Os puritanos, com sua abordagem austera e devota à religião, valorizavam a introspecção e a reflexão espiritual como meio de comunhão com o Deus Trino. A vigilância e a meditação desempenharam um papel essencial na vida cotidiana dos puritanos, permitindo-lhes explorar sua relação com Deus e com o mundo que os rodeava de maneira profunda e pessoal.

Por meio da meditação, os puritanos buscavam purificar suas almas, consolidando afeições religiosas e uma forte comunhão com Deus. A prática da meditação os conduzia a um estado de consciência contemplativa, onde pudessem refletir sobre questões morais e espirituais. Essa experiência de interiorização contribuiu para a formação de um imaginário puritano marcado pela noção de que toda a sua vida era vivida diante de Deus.

O imaginário puritano, enraizado na meditação e na introspecção, influenciou não apenas a esfera religiosa, mas também teve repercussões significativas na construção da sociedade e da cultura das colônias puritanas na América do Norte. Por levarem sua vida diante de Deus a sério, e perceberem pela profunda meditação bíblica que tudo deveria redundar em glória para Deus, o impacto da meditação no imaginário puritano resultou em um impacto social. A visão do mundo puritana, moldada por sua prática meditativa, permeou a ética de trabalho, a educação, a literatura e as relações sociais. Em última análise, a meditação desempenhou um papel fundamental na formação do imaginário puritano, tornando-se um pilar da experiência espiritual e cultural que moldou o desenvolvimento das colônias puritanas e, por extensão, a história dos Estados Unidos. Beeke lembra que “para os puritanos, a meditação exercitava tanto a mente quanto o coração; aquele que medita aborda um tema com seu intelecto, bem como com suas emoções” (JONES, 2016).

Por investirem tempo meditando em sua vida diante da realidade transcendente de Deus, absolutamente tudo que os puritanos faziam eram fruto de uma imaginação permeada pelas Escrituras. Isso necessariamente os levou a pensar sobre família, política, educação, cuidado aos necessitados e trabalho de maneira mais ampla. David Saxton ressalta:

Não admira que seja assim! As Escrituras são de autoria do Deus eterno, aquele que criou bilhões de galáxias. Devemos esperar encontrar esse tipo de amplitude em sua Palavra Escrita. Há uma qualidade na Bíblia que pode afogar um estudioso em suas profundezas do conhecimento; ainda, ao mesmo tempo, as Escrituras permitem que uma criança caminhe ao longo de seus litorais e entenda sua simples verdade (SAXTON, 2022).

Nota-se que a perspectiva puritana de família é notável por suas virtudes arraigadas em princípios religiosos e morais. Para os puritanos, a família era considerada uma instituição sagrada, onde a devoção a Deus e a obediência aos preceitos divinos eram valores inabaláveis. O casamento, nessa visão, era visto como um compromisso divinamente abençoado, cuja fidelidade conjugal era um testemunho da força dos laços familiares. O cultivo da educação religiosa e ética dos filhos era prioridade máxima, com os pais desempenhando o papel de mentores zelosos, transmitindo sabedoria espiritual e ensinamentos morais de geração em geração.

Leland Ryken lembra que o propósito último da família para os puritanos é glorificar a Deus para os puritanos:

O que há de importante em enxergar o propósito da família como a glória de Deus? A longo prazo, ele determina o que acontece com a família. Fixa as prioridades numa direção espiritual em vez de material. Isso determina o que uma família faz com o seu tempo e como gasta seu dinheiro (RYKEN, 2013).

Além disso, a família puritana era um alicerce sólido da comunidade, onde solidariedade, apoio mútuo e coesão social eram incentivados. O ambiente familiar proporcionava um senso de segurança, estabilidade e valores compartilhados. Em resumo, a família puritana era notável por sua profunda devoção à fé, pela ênfase na educação moral e religiosa e por ser um pilar inabalável da coesão e moralidade na comunidade. Essas qualidades sustentavam o tecido social e moral das comunidades puritanas, servindo como um exemplo de compromisso e integridade.

  1. Conclusão

Em síntese, a análise profunda de O Peregrino, de John Bunyan, revela o papel preponderante da meditação no forjamento do imaginário puritano, elucidando os meandros de uma fé intrinsecamente ligada à reflexão espiritual. Neste épico alegórico, a prática da meditação emerge como um farol que ilumina o caminho que construiu os protagonistas em sua busca pela santidade e redenção. Ela transcende meros devaneios introspectivos, constituindo-se como uma ponte que liga os crentes ao divino, conferindo discernimento espiritual e fortalecendo os laços que os puritanos ansiavam estabelecer com seu Criador.

Ademais, a influência da meditação sobre o imaginário puritano se traduz na re- presentação de personagens que são retratados como mais virtuosos e alinhados aos princípios divinos. Este fenômeno não apenas moldou a visão dos puritanos sobre si mes- mos, mas também serviu como um espelho moral para a sociedade da época. A meditação personificou o ideal puritano, refletindo a busca constante pela pureza, retidão e comunhão com o divino, valores que ecoaram não somente na literatura de Bunyan, como também na forma como os puritanos moldaram a sociedade e sua ética religiosa.

Portanto, é inegável que a meditação desempenhou um papel fundamental na formação do imaginário puritano, alçando-se como um instrumento de transcendência espiritual, uma força motriz que impulsionou os puritanos em direção à santidade e à busca incessante por uma comunhão mais profunda com Deus. Em O Peregrino, John Bunyan não apenas capturou a essência dessa prática espiritual, mas a cristalizou como um pilar central na construção da identidade puritana. Por meio da meditação, os puritanos encontraram um refúgio para suas almas inquietas e, assim, legaram a posteridade não apenas uma obra literária memorável, mas um testemunho vívido de sua devoção à fé e à contemplação espiritual.

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Referências bibliográficas

Bunyan, J. O Peregrino (Rio de Janeiro: BV Books, 2014).

Hedges, B. G. Vigilância: recuperando a disciplina espiritual perdida (Brasília: Éden Publicações, 2023).

Jones, J. B. e M. Teologia Puritana: uma doutrina para a vida (São Paulo: Vida Nova, 2016).

Packer, J. I. Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida Cristã (São José dos Campos: Fiel, 2016).

Ryken, L. Santos no mundo: os puritanos como realmente eram (São José dos Campos: Fiel, 2013).

Saxton, D. W. O plano de Deus para a batalha da mente: a prática puritana da meditação bíblica (Brasília: Éden Publicações, 2022).

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[1]Bunyan retrata a batalha da peregrinação cristã com vívida realidade de quem está passando também por estas lutas.


Fonte: https://gileadejuazeiro.com.br/o-papel-da-meditacao-na-formacao-do-imaginario-puritano-uma-analise-de-o-peregrino/

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